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O silêncio nos é cenário costumeiro | Mayara Cassiano

 


NÃO SEI MAIS NADA SOBRE MESA PARA DOIS

 

Sim! Mesa para dois. Um para mim e outra para minha ausência, essa falta que insiste em existir.

O silêncio nos é cenário costumeiro: beira a paz e beira o abismo. Se é possível ouvir os batimentos do peito em momentos de tensão como fora anos atrás: sair sozinha me causava julgamentos ácidos contra mim mesma.

Vagueio o olhar a minha volta. O restaurante é bem acolhedor: com luz natural que produziu uma sombra ao entardecer, decoração e cores das paredes que me lembram uma vida nos anos 90, aquele ar vintage me traz uma paz que não me recordo de onde.

 

Enquanto minha presença turva olhares alheios com julgamentos alheios, insisto em me sentir bem. Confortável com o que construí de mim até agora. Ou aliás, venho construindo e me reconstruindo. Esse movimento, confesso, me abala, mas é necessário. Pior do que um objeto quando é comprimido por algo maior e tenta voltar ao estágio inicial. Chamam de Resiliência. Eu deixaria esse conceito para a Física: impulso.

 

Cabelos soltos, tamanho médio, as costas livres e tonificada os músculos, o vestido entregava essa abertura, nua e fresca para respirar, além de braços e ombros à mostra: sabe aquela sensualidade serena e tranquila, pós posta de graça e convidativos aos olhares. Eu respirava em paz.

 

Até que... a solitude deu lugar à solidão: fui golpeada. O garçom me pergunta: "Está esperando alguém?". Respondo que sim e eis o combate. A solidão travestida em ausência me era um golpe fatal. Bem mais que àquela personagem de vestido preto dançando tango argentino do diretor Martin Brest em Perfume de mulher, era uma ausência amiga e inimiga das minhas horas de paz comigo mesma.

 

Sinto o nocaute na garganta. Bebo goles de saliva em seco. O estômago embrulha, fica do avesso de mim mesma. Sinto arrepios do meio da coluna até os cabelos.

E assim trocamos, prato: dois; copos: dois; taças: duas; talheres em dobro. Refeição...

Uma. Uma para mim que me compele, compete e complete o oco que acomete o estômago e que a mente não entende e não acostuma calhar.

O garçom estranha... porém, é cliente antiga. Há pessoas e pessoas. Manias e manias. Vai entender!

 

É dado a hora de imergir com os pensamentos de outrora que minha consciência adora fazer esse exercício:

Como seria um diálogo entre "duas pessoas" sendo uma existente e a outra que existe para esse outrem, mas não se é palpável, nem tangível de qualquer raciocínio feroz de que a fome por completude ou pertencimento venha à mesa compreender?

Como seria sentar-se à mesa consigo, consigo mesma e com a lacuna de si mesma bem ali, ao teu lado, ou a tua frente?

 

Como seria enfrentar o gosto insólito, indissolúvel, impenetrante de uma outra alma "vazia" que circunstancialmente anda contigo, senta contigo à mesa, permanece contigo nas horas mais remotas de completo silêncio que faz reverberar a fome, o baque incompreensível no estômago, as borboletas que não voam mais, só embrulham e te retornam ocas, como o vento formando gases intestinais no teu corpo?

 

Como seria olhar teu reflexo no vidro de um restaurante tal qual em uma pintura de Edward Hopper – uma mulher sozinha, se deparar com olhar de soslaio para a ausência e se manter firme, viva, altiva, tenaz, vivente, vivaz vislumbrando no prato, a refeição da fome de afeto, apego, afago desconvizinho da abjeção da solidão.

 

Sim! É necessário esse horror de adjetivação para quem sabe constituir o abismo entre o eu e o "eu" personificado pela falta, ausência. Ausência. AUSÊNCIA! Eu grito. Au-sên-cia.

Já não me devora.

Já não me apavora.

Já não me surpreende.

Já não me suporta.

Já não me aflige.

Já não me atinge.

Hoje em diante, te dou a cadeira.

Te faço companhia.

Te abraço com força, pois entendo que é com tua ausência que me completo por inteiro.

Que preciso de espaços, vazios, ocos entranhamentos e estranhamentos para me pertencer, me compreender, me pertencer. A mim mesmo. A ti mesmo. Ausência necessária. Ausência tributária. Só se paga o imposto da ausência, aquele que souber dar valor a presença.

Ou...

Só se paga o imposto da ausência, aquele que já entendeu que presença é artigo de luxo em tempo líquido, frívolo, frígido, ignóbil, deplorável.

Nunca ansiamos tanto pela presença como a ausência banca a permanência entre muitas pessoas.

Nunca antes precisamos reafirmar a ausência como produto luxoso para que a presença seja valorizada à doses homeopáticas de solitude.

 

Ausência, peça a conta que hoje eu te entendo mais que os anos e os grisalhos de meus cabelos me fizeram entender: que é bom te ter e que bom que te tenho! Se carrego a ausência comigo, é sinal de que a presença existe e há muito existe e não percebia que ela era dona de mim mesma.

 

Sobre a autora:

Mayara Cassiano, 34 anos, é de Teresina-PI. "Escrevo com a potência do vagar das horas que escondem a complexidade de ser: tudo aquilo que nos é possível diante da arte".

Instagram: @mayaracass


2 comentários:

O Poesia na Alma pertence ao universo da literatura livre, como um bicho solto, sem dono e nem freios. Escandalosamente poéticos, a literatura é o ar que enche nossos pulmões, cumprindo mais que uma função social e de empoderamento; fazendo rebuliço celular e sexo com a linguagem.

Instagram: @poesianaalmabr