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Minha feliz invenção | uma crônica de Hilda Hilst

 


MINHA FELIZ INVENÇÃO

 

Gosto de escrever do avesso das gentes, do avesso das coisas, o que ninguém vê, gosto de falar de gente rara, louca naquele sentido da ousadia, os loucos de piedade, por exemplo, como essa admirável Mara Thereza que foi a semana passada a um circo e encontrou três tristes leões magérrimos esqueléticos e um com tanta fome que comeu o rabo do outro e aí ela me diz que está procurando alguém para ficar com os três leões... e eu tô procurando alguém que fique comigo, quem sabe um leão para eu ser comida (no pior sentido, engolida mesmo) e aí acaba tudo e eu não preciso mais ler notícias como as que vêm da Iugoslávia, esta: várias mulheres grávidas foram desventradas e tiveram seus fetos arrancados da barriga e depois pisoteados... O ser humano é de uma estupidez desembestada... e ainda dizem que é preciso ser otimista, que só os otimistas constroem... Besteira, tenho sido pessimista desde sempre e escrevi bravamente. — O que é preciso conservar são as chamadas “ilusões intensificadoras da vida” (Otto Rank), e traduzindo quer dizer engana-te a ti mesmo, aja “como se” tudo não fosse como é, só vai levar 500 anos para todo mundo ficar “normal” no melhor sentido e 500 anos passam depressa, acalma-te, “tudo vem a seu tempo”, ninguém é canalha, ninguém é sórdido, todo mundo nasce bom, coitaaados! São todos bonzinhos. Preservemos a sórdida canalha e estúpida raça humana com suas mesquinharias, sua malvadez, sua ilimitada crueldade. E esses caras da engenharia genética tão fazendo o quê? Não dá pra fazer um bom espermicida não? Enquanto isso não acontece, vamos brincar de “como se”.

Vamos brincar meus amigos

De ver beleza nas coisas.

Beleza no desatino

No teu amor descuidado

Beleza tanta beleza

Na pobreza.

Vamos brincar meus amigos

De ver beleza na moça

Que por amor não se dá.

Nem por nada. E se reserva

Ao homem que Deus dará.

Vamos brincar meus amigos

De ver beleza na morte.

Mais que na morte, na vida.

Tão doce morrer em vida

Tão triste viver em vão.

Vamos brincar meus amigos

E de mãos dadas cantar

Minha feliz invenção:

Beleza tanta beleza

Em tudo que se não vê

Beleza.

(segunda-feira, 7 de junho de 1993)

 

 

Sobre a autora:

Nascida em Jaú (SP) em 1930, Hilda Hilst formou-se em Direito pela USP e, aos 35 anos, mudou-se para a chácara Casa do Sol, próxima a Campinas, onde se dedicou integralmente à criação literária. Escreveu poesia, ficção e peças de teatro. Morreu em 2004. Hilda foi a autora homenageada da Flip 2018.

 

Fonte: (Hilst, Hilda, 1930-2004. 132 crônicas: Cascos & carícias e outros escritos / Hilda Hilst; introdução Zélia Duncan; prefácio Ana Chiara. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. [Clássicos de Ouro])


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