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Louise Gluck em cinco poemas

 


A ÍRIS SELVAGEM

 

No fim do meu sofrimento

havia uma porta.

 

Ouve‑me bem: recordo aquilo

a que tu chamas morte.

 

Por sobre mim, barulhos, ramos ondulantes de pinheiro.

Depois, nada. O sol fraco

a cintilar na superfície seca.

 

É muito duro sobreviver assim,

a consciência

sepultada na terra escura.

 

Depois, o fim: aquilo que se teme, ser

alma e incapaz

de falar, termina bruscamente, a terra hirta

curvando ‑se um pouco. E o que eu achei serem

pássaros lançando ‑se em voo pelos ramos baixos.

 

A vós que não recordais

a passagem do outro mundo

digo ‑vos que eu poderia novamente falar: o que

regressa do olvido regressa

para encontrar uma voz:

 

do centro da minha vida brotou

uma fonte fresca, sombras em azul

profundo sobre o azul da água do mar.

 

(Tradução: Ana Luísa Amaral)

 

MATINAS

 

O sol brilha; junto da caixa de correio, folhas

da bétula cindida, dobradas, plissadas como barbatanas.

Debaixo delas, estames ocos dos narcisos brancos, Triandros,

Trompetes; folhas

negras da violeta selvagem. Noah diz

que quem é depressivo odeia a Primavera, o desequilíbrio

entre o mundo interior e o de fora. Eu tenho

outra ideia — depressiva, sim, mas unida também

à árvore viva, apaixonadamente, o meu corpo

enrolado no seu tronco, à chuva da tarde, quase em paz,

quase capaz de sentir

a seiva borbulhante, subindo por mim. Diz Noah que esse é

um erro dos depressivos, sentirem ‑se um só

com uma árvore. Ao passo que o coração feliz

vagueia pelo jardim como folha caída, um fragmento

da parte, não do todo.

 

(Tradução: Ana Luísa Amaral)

 

PARODOS

 

Há muito tempo, eu fui ferida.

Aprendi

a existir, reativamente,

sem contato

com o mundo: sempre te digo

o que pretendia ser —

um aparelho de escuta.

Não inerte: imóvel.

Um pedaço de madeira. Uma pedra.

 

Para quê cansar‑me a discutir, a argumentar?

Aquela gente a respirar nas outras camas

mal prestava atenção, escapando

ao controlo

como qualquer sonho —

Através das persianas, eu observava

a Lua no céu da noite, minguando, inchando —

 

Nasci para cumprir uma vocação:

dar testemunho

dos grandes mistérios.

Agora que já vi

o nascimento e a morte, sei:

na ordem das trevas estas

coisas são provas, não

mistérios —

 

(Tradução: Margarida Vale de Gato)

 

UMA FANTASIA

 

Digo‑te uma coisa: todos os dias

morrem pessoas. Isso para começo da história.

Todos os dias, nas funerárias, nascem novas viúvas,

novas pessoas órfãs. Sentam ‑se de mãos cruzadas,

 a tentar decidir sobre essa nova vida.

 

Depois dão por si no cemitério, algumas

pela primeira vez. Assustam‑se por chorar,

às vezes por não chorar. Alguém se debruça,

lhes diz o que fazer a seguir, o que talvez signifique

dizer algumas palavras, às vezes

atirar terra para a campa aberta.

 

E depois volta toda a gente para a casa,

que de repente se enche de visitas.

A viúva senta‑se no sofá, muito solene,

para que dela se abeirem as pessoas em fila,

lhe peguem às vezes na mão, outras a abracem.

Descobre uma coisa para dizer a toda a gente,

agradece‑lhes, agradece‑lhes terem vindo.

 

No seu coração, quer que se vão embora.

Quer voltar para o cemitério,

voltar para a enfermaria, o hospital. Sabe

que é impossível. Mas é a sua única esperança,

o desejo de voltar atrás. E só um bocadinho,

não até ao casamento, até ao primeiro beijo.

 

(Tradução: Margarida Vale de Gato)

 

 

UM ROMANCE

 

Ninguém podia escrever um romance sobre esta família:

demasiadas personagens parecidas. Além disso, todas mulheres;

só havia um herói.

 

Agora o herói morreu. Como ecos, as mulheres duram mais;

são todas demasiado rijas, o que as prejudica.

 

Deste ponto em diante, não muda nada:

não há intriga sem herói.

Nesta casa, quando se diz intriga quer‑se dizer história de amor.

 

As mulheres não conseguem mexer‑se.

Oh, claro que se vestem, comem, mantêm as aparências.

Mas não há ação, não há desenvolvimento de caráter.

 

Todas estão decididas a suprimir

críticas ao herói. O problema é que ele é

fraco; as suas cenas especificam‑lhe

as funções, mas não a natureza.

 

Talvez isso explique por que razão a sua morte não foi comovente.

Primeiro ele está sentado à cabeceira da mesa,

onde mais se precisa da um testa de ferro.

Depois está a morrer, a cerca de um metro, a mulher segura‑lhe

um espelho debaixo da boca.

 

É extraordinário como se mantêm ocupadas, estas mulheres, a es-

-posa e as duas filhas.

A pôr a mesa, a levantar os pratos.

Cada coração trespassado por uma espada.

 

(Tradução: Margarida Vale de Gato)

 

SOBRE A AUTORA:

Louise Glück recebeu o Prémio Nobel da Literatura de 2020, “pela sua inconfundível voz poética, que, com uma beleza austera, tornou universal a existência individual”. O prémio da Academia Sueca reconhece um longo percurso de escrita de poesia e ensaio. Louise Elisabeth Glück nasceu a 22 de Abril de 1943 em Nova Iorque, filha de emigrantes húngaros, que se haviam fixado nos EUA algumas décadas antes. Estudou na Sarah Lawrence College e na Universidade de Columbia. Teve uma infância e adolescência difíceis, mas um contacto precoce com autores gregos e latinos permitiu-lhe acolher a herança clássica e escrever uma poesia que, através de imagens universais, aborda a fragilidade essencial dos seres humanos. É autora de mais de uma dezena de livros de poesia e de dois ensaios, Proofs and Theories (Prémio PEN/Martha Albrand) e American Originality.

Recebeu o National Book Critics Circle Award por The Triumph of Achilles e o Pulitzer por A Íris Selvagem. Recebeu também o Bobbitt Prize, concedido pela Biblioteca do Congresso, o William Carlos Williams Award da Poetry Society of America e o Ambassador Book Award da English-Speaking Union. Louise Glück foi poeta laureada em 2003 e 2004, membro da Academia Americana de Artes e Letras e escritora residente da Rosenkranz na Universidade de Yale.Vive em Cambridge, Massachusetts, nos EUA.


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