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Resenha – Quando o poema se transforma em revolta





“Repensemos a tarefa
de pensar o mundo”
(Hilda Hilst)

No livro ‘Que é a literatura?’, Sartre aponta que um escritor engajado é um ser político capaz de mediar a produção criativa e a realidade social, desse modo, dialogando com as mudanças sociais. Ou seja, determinado sujeito decide ‘dizer (prosa) algo’ em um espaço de tempo específico, tornando esse ‘dizer (prosa)’ histórico.

“(...) a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (Sartre, pág.  21)

Em 50 poemas de revolta, vários autores, Companhia das letras, nos deparamos com poemas de denúncia escritos em momentos importantes da história do Brasil. São trinta e quatro poetas nacionais, do modernismo a poesia marginal da década de 70, que discorrem sobre preconceito, intolerância, racismo, machismo, desigualdade social, etc. Como na poesia Erro de Português, do poeta modernista Oswald de Andrade (1890-1945), escrita em 1927 como dedicatória na capa do livro Primeiro caderno e publicado pela primeira vez em 1945, no livro Poesias reunidas.

erro de português

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
(Oswald de Andrade)

Em referência à carta de Caminha no período da invasão do Brasil pelos Portugueses, Oswald de Andrade utiliza da ironia para frisar a imposição da cultura eurocêntrica à cultura do indígena. Em Literato Cantabile, poesia de Torquarto Neto (1944-72), a angústia existencial bem como o momento político do país (Ditadura Militar), o eu lírico não está acima dos acontecimentos políticos e culturais, ele atravessa esse instante como subversivo e marginal “literatos foram todos para o hospício”.

literato cantabile

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício.
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim, a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

Você não tem que me dizer
O número do mundo deste mundo
Não tem que me mostrar
A outra face
Face ao fim de tudo

Só tem que me dizer
O nome da república ao fundo
O sim do fim
Do fim de tudo
E o tem do tempo vindo;

Não tem que me mostrar
A outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de ideia. É proibido
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento.
(Torquarto Neto)

Para além dos malditos marginais, o leitor adentra na poesia-memória de Conceição Evaristo (1946), escritora e poeta negra, narrando a história da mulher negra no Brasil, falando sobre ela, a autora, e outras que fazem parte dela como memória celular e histórica, seu eu-coletivo, a consciência de ser mulher e negra.

vozes-mulheres

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(Conceição Evaristo)


50 Poemas de Revolta tem muito o que dizer e explorar, tanto pelo momento em que os poemas foram escritos e publicados quanto pelo caráter atemporal. Autores como Adelaide Ivánova, Alice Ruiz, Ana Cristina Cesar, Angélica Freitas, Armando Freitas Filho, Bruna Beber, Cacaso, Carlos Drummond de Andrade, Carolina Maria de Jesus, Hilda Hilst, Chacal, etc., tão diferentes e unidos pela revolta, historicamente desobedientes quando, por meio da prosa, se mostram engajados em seu meio social e rompem com a ideia daquilo que deve ser negado, daquilo que deve ficar na alienação.

9 comentários:

  1. Olá, tudo bem? Que show essa ideia de poemas que explodem em revolta, principalmente por tratar de temas e acontecimentos tão importantes. Ainda não conhecia a obra, mas adorei tua resenha e fiquei curiosa pra ler!

    Beijos,
    Duas Livreiras

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  2. Olá,

    Eu tive a oportunidade de ler essa obra e fiquei maravilhada com a escolha dos poetas e escritos que compõem a antologia, porque todos falam sobre preconceito contra gênero, opção sexual, regionalismo, assédio, pobreza e riqueza, colonização e outras temáticas que ultrapassam os limites do tempo.

    Beijos!

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  3. Já sei o que dar de presente para o meu pai. <3
    Anotei essa dica e já estou indo atrás.


    Sai da Minha Lente

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  4. Olá!
    Não tenho muito costume de ler poemas, gosto muito de crônicas, porém chama atenção o título e ver que alguns grandes nomes da literatura estão reunidos nessa seleção.
    Certamente uma leitura para refletir.
    Beijos!

    Camila de Moraes

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  5. Oiiee

    Eu adoro esse estilo de poema protesto porque nos permite enxergar através de versos a realidade que cercava esses autores. É mais uma prova das várias fnções e do poder da literatura em si. Adorei a dica

    Beijos

    www.derepentenoultimolivro.com

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  6. Um livro excelente para apaixonados por poesia, ainda mais se tratando de autores nacionais e os assuntos pertinentes nos dias de hoje, realmente são palavras atemporais, que eu adoraria ler. Vou anotar essa dica.

    Abraços.
    https://cabinedeleitura0.blogspot.com/

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  7. Olá! Confesso que eu não sou muito fã de poemas, então esse livro não me chamou atenção, mas que bom que aproveitou a leitura.
    Abraços

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  8. Oi oi!
    Eu não costume ler poemas com frequência, mas tenho lido bem mais do que outrora.
    Achei as temáticas dos poemas muito interessante, bem discursivos (já penso em trabalhar com os alunos). Essa é uma daquelas obras que não pode faltar na nossa estante.
    Beijos do Wes ^^

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  9. Que encanto de livro, não. Imagino a riqueza dos poemas descritos no livro. Ainda não tive a oportunidade de ler a obra, mas não se pode negar que a obra nos chama.
    Bjim!
    Tammy

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O Poesia na Alma pertence ao universo da literatura livre, como um bicho solto, sem dono e nem freios. Escandalosamente poéticos, a literatura é o ar que enche nossos pulmões, cumprindo mais que uma função social e de empoderamento; fazendo rebuliço celular e sexo com a linguagem.

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