Sou um Gato / de Lygia Fagundes Telles
Ele
fixaria em Deus aquele olhar verde-esmeralda com uma leve poeira de ouro no
fundo. E não obedecia porque gato não obedece. Quando a ordem coincide com sua
vontade, ele atende mas sem a humildade do cachorro, o gato não é humilde, ele
traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza
a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.
Lembro
agora daquela história que ouvi na infância e acreditei porque na infância a
gente só acredita. Mais tarde, conhecendo melhor o gato é que descobri que ele
jamais teria esse comportamento, questão de caráter. Dizia a história que Deus
pediu água ao cachorro que lavou lindamente o copo e com sorrisos foi leva-lo
ao Senhor. Pedido igual foi feito ao gato e o que ele fez? escolheu um copo
todo rachado, fez pipi dentro e dando gargalhadas entregou o copo na mão
divina. Conheço bem o gato e sei que ele jamais se comportaria conforme aquela
antiga história. O cachorro, sim, bem-humorado, faria tudo o que fez ao passo
que o gato ouviria a ordem divina mas continuaria calmamente deitado na sua
almofada, apenas olhando. Quando se cansasse de olhar, recolheria as patas no
calor do peito assim como o chinês antigo recolhia as mãos nas mangas do
quimono. Elegante. Calmo. E mergulharia no sono em sonhos, gato sonha menos do
que o cachorro que até dormindo parece mais com o homem. Outro ponto discutível:
dando gargalhadas? Mas o gato não dá gargalhadas, é o cachorro que ri abanando
o rabo naquele jeito natural de manifestar alegria. Os meus cachorros – e tive
tantos – chegavam mesmo a rolar de rir, a boca arreganhada até o último dente. O
gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco
os olhos como se ferisse a luz, esse o sorriso do gato. Secreto. E distante. Nem
melhor nem pior do que o do cachorro mas diferente. Fingido? Não, porque ele
nem se dá ao trabalho de fingir. Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa palavra
saiu de moda mas deveria voltar porque não existe definição melhor para um
felino. E para certas pessoas que falam pouco e olham muito. Cavilosidade sugere
cuidado, afinal, cave é aquele recôncavo onde o vinho fica envelhecendo em silêncio,
no escuro. Na cave o gato se esconde solitário, porque sabe do perigo das
aproximações. Mas o cachorro, esse se revela e se expõe com inocência, aqui
estou!
(Lygia
Fagundes Telles, in A Disciplina do Amor. Nova edição revista pela autora. Companhia
das Letras,2010)
SOBRE A AUTORA:
Lygia
Fagundes Telles nasceu em São Paulo e passou a infância
no interior do Estado, onde o pai, o advogado Durval de Azevedo Fagundes, foi
promotor público. A mãe, Maria do Rosário (Zazita), era pianista. Voltando a
residir com a família em São Paulo, a escritora fez o curso fundamental na
Escola Caetano de Campos e em seguida ingressou na Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo, onde se formou. Quando estudante
do pré-jurídico cursou a Escola Superior de Educação Física da mesma
universidade.
Ainda
na adolescência manifestou-se a paixão, ou melhor, a vocação de LFT para a
literatura incentivada pelos seus maiores amigos, os escritores Carlos Drummond
de Andrade e Erico Verissimo. Contudo, mais tarde a escritora viria a rejeitar
seus primeiros livros porque em sua opinião “a pouca idade não justifica o
nascimento de textos prematuros, que deveriam continuar no limbo”.
Quarta
ocupante da Cadeira nº 16, eleita em 24 de outubro de 1985, na sucessão de
Pedro Calmon e recebida em 12 de maio de 1987 pelo acadêmico Eduardo Portella.
Post a Comment